A recuperação
prometida pelo governo Temer não se confirmou. A recessão brasileira é mais
profunda e as medidas adotadas até agora não são a solução.
Por Ricardo Carneiro*
A decepção do empresariado brasileiro e do governo Temer com a continuidade da crise e a não confirmação das expectativas de uma recuperação imediata sugerem que se discuta em maior profundidade a sua natureza e o caráter peculiar das medidas necessárias para superá-la.
De início, é
forçoso assinalar: vivemos uma crise comandada pelos estoques e não uma
convencional determinada pelos fluxos. Vale dizer, uma recessão originada nos
balanços. Entre 2011 e 2014, o movimento predominante é o da deterioração dos
fluxos, como resultado da desaceleração do crescimento. No biênio posterior,
2015/2016, a característica essencial é a dos choques simultâneos, promovido
pela política macroeconômica, a crise política e a consequente degradação dos
balanços.
Iniciemos pela
exceção, o setor externo, para o qual o ciclo de liquidez em declínio, mas
ainda favorável, a sólida posição do setor público como credor líquido, em
razão do volume de reservas de cerca de 380 bilhões de dólares e o mecanismo de
autocorreção nas transações correntes evitaram a mudança de natureza da crise.
O desequilíbrio
de fluxo, expresso em um déficit em transações correntes da ordem de 4,5% do
PIB, no início de 2015, foi progressivamente corrigido pela recessão, chegando
ao final de 2016 à marca de 1% do PIB. A conta financeira deteriorou-se, embora
tenha sido suficiente para financiar o déficit corrente em declínio e
importantes movimentos negativos dentro dela.
No setor
privado, em particular na indústria, uma grande parte das empresas vivencia hoje
uma situação Ponzi. Mais da metade delas, 55%, de acordo com a Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo, não gera recursos suficientes para servir a
dívida.
Isto resultou de
um longo processo. Entre 2011 e 2104, crescimento do fluxo de caixa se reduz e
as dívidas aumentam, mas ainda a uma velocidade moderada. Por quê? Enquanto a
desvalorização do real empurra estas últimas para cima, a redução da Selic e
dos spreads contêm seu crescimento.
O quadro é
diferente a partir de 2015. Do lado corrente, a recessão, a desvalorização
cambial e o tarifaço deterioram o fluxo de caixa. Mas, apesar de sua
intensidade, este não é o efeito principal. O choque de juros e a depreciação
do câmbio jogam o custo da dívida para níveis elevadíssimos. Em um ano, 2015, a
relação fluxo de caixa bruto/despesa financeira, cai pela metade e passa de
1,53 para 0,78, indicando a situação Ponzi.
A situação das
famílias, de acordo com os dados da Confederação Nacional do Comércio, é grave.
A percentagem com algum tipo de dívida, flutua em torno de 60%, entre 2011 e
2014. Em paralelo, a inadimplência lato senso declina, reduzindo-se tanto o
número de famílias com contas em atraso quanto aquelas em default.
Esse quadro muda
radicalmente após 2015 com o choque de juros e o aumento dos spreads. A
percentagem de famílias endividadas dá um salto brusco para 67% e passa a cair,
indicando que aquelas que podem começam a se livrar das dívidas. Ao mesmo
tempo, a inadimplência aumenta substancialmente tanto em relação aos atrasos,
de 18% para 25% de todas as famílias endividadas, quanto para o default, que
avança de 5% para 10% do total.
A situação do
setor público é similar. Entre 2011 e 2014, o saldo primário desaparece. Um
superávit de 3,2% do PIB em 2011 vira um pequeno déficit de 0,5% em 2014. A
despeito disso, a dívida pública declina na maior parte do período, sob o
impacto da desvalorização do real e da queda da taxa de juros.
Apenas em 2014,
as dívidas bruta e líquida aumentam levemente em cerca de três pontos
percentuais do PIB. O quadro é completamente distinto em 2015 e 2016, biênio no
qual a dívida bruta aumenta em vinte pontos percentuais do PIB, e a líquida, em
doze. A despeito do crescimento do déficit primário para o patamar de 2%, ele
tem muito menos relevância na explicação do aumento da dívida movida sobretudo
pela carga de juros e, em menor escala, pelo custo dos swaps cambiais.
A análise
anterior indica a dupla natureza da crise atual: o declínio dos fluxos de renda
e o aumento intenso do endividamento. Este último se comporta como uma espécie
de buraco negro, impedindo o efeito multiplicador do gasto. Diante desse
quadro, se a evolução do setor externo permitir, a reativação da economia
dependerá de dois tipos de medidas: o refinanciamento das dívidas, uma condição
necessária, somada à reativação do circuito do gasto-renda, condição
suficiente. A despeito de o setor público estar em situação financeira
delicada, as iniciativas devem partir dele, em razão de seu tamanho e maior
grau de liberdade.
No plano
financeiro é necessária uma ampla renegociação das dívidas. Sua condição
essencial é uma redução da taxa básica de juros, a Selic, e dos spreads
bancários. Quanto à primeira, não só a queda da inflação, mas a taxa interna
superior à externa permite sua redução. Os bancos públicos, que não tem a
imperiosidade de obtenção de lucratividade semelhante aos privados, poderiam
tomar a iniciativa de reduzir os spreads e renegociar as dívidas. A criação de
incentivos para o setor bancário privado aderir à renegociação também é crucial.
A queda da Selic
reduz a carga de juros e a pressão sobre a dívida pública, abrindo espaço
fiscal para o aumento temporário do déficit primário. Este deveria financiar
gastos com elevado multiplicador, como políticas sociais direcionadas às
camadas de baixa renda e a retomada de obras de infraestrutura paralisadas.
Por outro lado,
seria importante incentivar o investimento do setor privado, mormente na
infraestrutura por meio de condições especiais de financiamento. A constituição
de um pool de recursos postos à disposição dos bancos poderia dar conta desta
tarefa. Esses recursos podem ter origem em mudanças na composição dos ativos do
setor público, com impacto nulo sobre as dívidas. A securitização da dívida
tributária do setor privado e o uso de parte das reservas internacionais seriam
os dois candidatos mais imediatos a gerar os recursos desse fundo.
* Professor
titular do Instituto de Economia da Unicamp e ex-diretor pelo Brasil do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), de julho de 2012 a junho de 2016.
Fonte: Carta Capital


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